“Vamos sorrir. Sorriam”
Eliane Brum
05 MAR 2025 - 05:00 CET
A frase do título é da brasileira Eunice Paiva, esposa de Rubens Paiva, deputado federal cassado pela ditadura militar que oprimiu o Brasil de 1964 a 1985. Ele foi retirado de sua casa, torturado e assassinado nas dependências do exército em 1971, mas sua família só conseguiu obter um atestado de óbito após 25 anos de muita luta. A história real de Eunice e sua família é contada no longa-metragem Ainda Estou Aqui, de Walter Salles, que ganhou o Oscar de Melhor Filme Internacional. A vitória, comemorada (quase) como a final de uma Copa do Mundo no Brasil em plena catarse carnavalesca, encontra hoje cinco crianças sem o corpo do pai para enterrar; um país com um presidente de centro-esquerda encurralado pela extrema direita, em grande parte defensor dessa mesma ditadura; um país com um presidente de centro-esquerda encurralado pela extrema direita, em grande parte defensor dessa mesma ditadura; nenhum dos cinco autores identificados punido, demora que já permitiu que três deles morressem sem responder pelo crime; a corrosão global da democracia, explicitada em uma cerimônia do Oscar sem nenhuma crítica contundente ao horror cotidiano praticado por Donald Trump e Elon Musk, como se os artistas abdicassem de sua responsabilidade pública e espontaneamente colocassem a mordaça. A covardia parece ser uma das crueldades extras do novo fascismo.
Muitos esperam que o apoio e as comemorações da vitória unam, ao menos por um momento, um Brasil profundamente dividido, onde a possibilidade de diálogo está rompida. Mas, como Eliana Paiva, uma das filhas, lembrou em entrevistas, o filme é sobre um assassinato brutal. E sobre um corpo não enterrado. Que aponta para muitos outros corpos não enterrados.
Ao contrário de países como a Argentina, o Brasil não julgou os crimes da ditadura militar. A falta de responsabilização, que até hoje permite que os torturados encontrem seus torturadores na padaria da esquina, está no DNA da extrema direita representada pelo ex-presidente Jair Bolsonaro e na tentativa de golpe de Estado de 8 de janeiro de 2023. O filme premiado, que faz memória em um país que optou por apagá-la, é mais um pequeno ato de resistência. “Vivemos em uma época em que a memória está sendo apagada como um projeto de poder, então criar memória é extremamente importante”, disse o diretor à imprensa após a cerimônia.
A campanha do Oscar - e antes disso outros prêmios, como o Goya de melhor filme ibero-americano e o Globo de Ouro de melhor atriz para Fernanda Torres, que interpreta a protagonista Eunice Paiva - estourou bolhas e já levou mais de cinco milhões de brasileiros aos cinemas. Infelizmente, isso não se traduz em mais horror contra os torturadores e assassinos, que continuam a atacar os negros pobres nas favelas e periferias do Brasil, nas delegacias de polícia e nas prisões.
O filme de Walter Salles merece todos os prêmios, mas seu sucesso de público é uma prova de que as elites brasileiras (e mundiais) ainda acham mais fácil se identificar com uma família branca, de classe média, com uma mãe de cinco filhos dedicada ao lar e à família. As investigações da Comissão Nacional da Verdade revelaram 434 mortos e desaparecidos, a maioria deles brancos. A ditadura exterminou pelo menos 8.000 indígenas.
Para ser eficaz, a memória não pode ser seletiva. Eunice Paiva entendeu que as desigualdades também estão presentes na esquerda progressista. Após a violência contra sua família, ela se formou em direito e trabalhou por muitos anos para proteger os povos indígenas e seus territórios na Amazônia.
“Vamos sorrir. Sorriam” é um mantra de resistência. Eunice Paiva escolheu a vida, e essa é a escolha mais revolucionária, a que todos nós devemos fazer neste momento em que a democracia e o futuro humano no planeta-casa estão sob ataque.